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6 min. de leituraQuando o nomadismo digital acaba

23 de outubro de 2019 6 min. de leitura

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6 min. de leituraQuando o nomadismo digital acaba

Tempo de leitura 6 minutos

Essa não é uma crítica ao nomadismo digital.

É uma pergunta essencial que preciso fazer para mim mesmo enquanto vivo viajando.

Há um ano eu descobri que tinha depressão e transtorno de ansiedade. Eu deixei muitas pessoas para trás que me acompanharam no processo de chegar onde cheguei – mas isso só são alguns fatos para dizer: sim, eu estava sofrendo.

Para quem vive viajando (vou falar baseado nas minhas duas dúzias de amigas e amigos que tem um estilo de vida parecido com o meu) é normal pensar que essa vida tem um fim. E tudo bem.

Algumas questões fazem parte da vida de um viajante em tempo integral:

“será que essa vida é pra mim?”

“por que eu não tenho uma vida normal, igual a de todo mundo?”

Com o tempo eu entendi que essa questão – quando o nomadismo acaba – não é importante só para quem vive viajando, ela é uma dúvida mais rotineira e tem a ver com a segurança de pertencer: até quando vou poder me chamar de nômade digital?, até quando vou ter esse emprego?, qual universidade vou fazer?, quem eu posso ser? será que dá?.

se mantendo no topo e garantindo sua medalha

Em qualquer guia-completo-para-se-tornar-um-nômade-digital-de-sucesso você começa largando seu emprego, vira freelancer, trabalha de casa, cria uma empresa, começa a gerir pessoas e clientes, viaja o mundo, passa a ganhar como nunca ganhou, fica mais feliz e é mais produtivo. 

Mas o que acontece se em algum desses passos você falha?

Você mente? Desiste? Omite? Por que a falha é um processo tão condenável?

Conversando com um dos meus amigos que vive como nômade ele soltou:

“Hey, mas você é um nômade raíz, né? Não volta pro Brasil, vive viajando sem parar.” 

No momento que ele falou isso eu senti um certo orgulho: Sim, eu sou um nômade raíz!

Porém, esse orgulho é perigoso. Ele é perigoso porque a definição de ser raíz não é minha. Hoje eu tenho essa medalha. Mas quem garante que amanhã vou tê-la?

Dá pra basear minha felicidade no orgulho de ser um nômade raíz?

É pra isso que eu vivo viajando, fico longe da minha família e lido com todos os problemas – que comentei na introdução -enquanto troco de país?

Eu não sei responder.

De verdade, eu não sei se a força que me trouxe aqui foi a de querer ser o melhor ou minha vontade de conhecer o mundo, talvez elas estivessem misturadas o tempo todo. 

Porém, querer ser o melhor trouxe muitas consequências negativas no processo como um todo. E é essa parte de mim que exige que eu esteja no topo e garantindo minhas medalhas. É essa parte que me faz cansar da minha segunda vontade, da minha vontade de conhecer o mundo. 

alta performance, atletas e se aposentar aos 35

Eu já fui atleta, até os 16 (joguei vôlei e tenho alguns ouros e vexames colecionados).

Não consigo contar quantos dias passei estressando meus músculos, minha saúde mental para performar bem. No esporte o ranking importa. E é como as coisas funcionam lá. Quebrar o próprio recorde é a rotina de um atleta. E essa rotina é seguida de uma série de burnouts.

O burnout acontece quando você chega no seu limite – seja lá qual for – e seu corpo te força a parar. É aquele dia que você vai pro buffet livre, compra o kit digestão e come como se não houvesse amanhã.

Com viver viajando não é diferente. Viver viajando é um grande buffet livre que, se você não sabe os seus limites, você estará sempre excedendo o que o seu corpo aguenta. 

Se você começa a ter burnouts com alta frequência – como um atleta tem – você só está reduzindo sua expectativa de vida e inviabilizando sua vida atual. 

Viver viajando acaba cedo quando viajar é sobre querer ser o melhor, dar check em todos os países, ganhar mais dinheiro, fazer todos os rolês turísticos, zerar o mundo, tentar ganhar todas as medalhas e ser o empreendedor do ano. 

Você só vai precisar se aposentar de uma vida se ela não é sua, se não é o que você escolheu. O nomadismo digital só acaba quando você não escolhe o seu jeito de viver viajando. 

o dia que decidi não voltar para casa

Duas semanas depois de ser diagnosticado com depressão, minha primeira terapeuta recomendou eu voltar para o Brasil, assim como todos os meus amigos. Eu tava em creta, um dos lugares mais lindos que eu já vivi. Não fazia sentido aquilo que as pessoas estavam me pedindo: parar de viver o que me fazia feliz. 

Eu acredito que todos tinham ótimas intenções recomendando isso. Mas uma das coisas que eles não sabiam (e que eu não sabia) é que a parte da vida que contribuiu muito para o meu processo de depressão estava mais conectada com essa necessidade absurda de performar do que o fato de viver viajando.

Se eu voltasse para a casa dos meus pais naquelas semanas de depressão eu estaria matando a parte boa que ainda me dava alguma felicidade.

Se eu voltasse para casa eu estaria dizendo para mim que eu desisti da minha vontade mais sincera. 

as coisas que deixo e os lugares que fico

Viver viajando é uma jornada sem fim pra mim – para o Lucas de hoje. Isso me faz sentir vivo. E eu só descobri isso quando estava decidindo sobre como seguiria com o tratamento da minha – infelizmente, severa – depressão. 

Foi necessário deixar velhos hábitos de lado: tentar parar de querer ser o melhor em tudo que faço, de me por em situações de risco o tempo todo. Foi necessário construir uma vida baseada em mim, para que ela seja mais interessante para mim do que para os outros.

O nomadismo digital acaba quando ele acaba contigo. Quando o seu estilo de vida não é uma soma das suas vontades, mas sim, uma coleção de medalhas para os outros.  

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